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domingo, 8 de novembro de 2009

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Olhando o luar da janela da minha casa veio-me à ideia como odorava os serões no Alentejo da minha meninice. Aqueles que eram passados na casa dos caseiros. De inverno, dentro da chaminé, com o lume de lenha de azinho no chão aquecendo-nos o corpo e reconfortando-nos a alma. Dispostos em meia-lua e sentados em pequenas cadeiras de madeira com fundo de buinho, com as panelas de barro com água a aquecer para se lavar a loiça e a cara nas manhãs a tiritar de frio, sem faltarem os feijões a cozer em lume brando para matar a fome no dia seguinte. Lá fora, o vento zumbia de meter medo e a chuva fustigava o casebre fazendo-nos aconchegar uns aos outros como os rebanhos na hora do acarro.
O pagode começava ao anoitecer e às nove era hora da recolha, pois o alvorecer começava com o cantar dos galos, bem cedo como se imagina.
De verão buscava-se, em vão, a brisa ao relento. O bafo quente que eclodia da terra era sossegado pelo chão de pedra que nos consolava com a sensação efémero de frescura. Por fim, quando a aragem começava a refrescar era hora da dormida. Os mais novos achavam que de martírio já tinham a sua dose, então, já que tinha de ser, pois que dormissem a contar as estrelas. E assim era.
Agora, ainda consigo ver as estrelas da minha janela, mas já não sinto o cheiro das pessoas, dos animais, do arvoredo, já não sinto as lambidelas dos cães a acariciarem-me o rosto, num último adeus até amanhã.
Sem mais delongas, que se faz tarde, e a vossa paciência tem limites, recordo-me, a propósito, de um artigo que escrevi já a alguns anos aquando das polémicas touradas em Barrancos e que me permito recordá-lo e partilhá-lo com vocês:
Apesar de se realizarem já legalmente não esgotam o assunto que, a meu ver, tem raízes profundas, merecendo uma reflexão ponderada.
Em primeiro lugar, não podemos esquecer que o homem, inserido no mundo natural a que também pertence, é o maior predador de todos os animais. Esta constatação não nos deve envergonhar, antes pelo contrário. A inteligência de que somos dotados permite-nos utilizar o engenho, a arte e a astúcia como uma arma de dominação ao serviço da sobrevivência e valorização da espécie. Tornamo-nos, assim, em seres superiores e por isso com responsabilidades acrescidas
A sobrevivência da espécie humana exige-nos, no entanto, que os recursos ao nosso dispor não sejam dizimados e que sejam explorados de forma equilibrada, sob pena de comprometermos o futuro, tornando o processo insustentável.
A continuidade dos seres vivos obriga à satisfação das necessidades físicas elementares, nomeadamente as alimentares, mas devido à sua inteligência e ambição os seres humanos tornam cada vez mais imprescindíveis os actos lúdicos. A relação do Homem com a natureza tem presente a tendência desta dualidade complementar, isto é, à necessidade de explorarmos a natureza junta-se a exigência de a conservarmos para nosso regalo. É, aliás, a necessidade e o desejo de usufruirmos o prazer como tal e o talento de o explorar um dos factores que, a meu ver, nos distingue das outras espécies. A criação artística, o tipo de apetência sexual ou o deleite da paixão ajudam a compreender estas particularidades e esta capacidade dos seres humanos.
A matança do porco, as corridas de toiros, a caça e a pesca desportiva são exemplos que invocam a sobrevivência da espécie humana numa perspectiva mais global: exerce-se o poder de predador num contexto lúdico. O prazer não está, ao contrário do que muitos julgam, no acto per si de matar, mas sim no conjunto de representações simbólicas ritualizadas, na interacção de sensações subjectivas, na partilha de referências comuns e na comunhão de emoções e afectos.
Outra objecção que igualmente merece meditação é o argumento do prolongamento desnecessário do sofrimento infligido aos animais. Quando os praticantes das actividades referidas estão tecnicamente preparados, são competentes, respeitadores dos regulamentos vigentes e sem patologias, digamos, desviantes, e, portanto, são bem formados, o sofrimento imposto aos animais não é mais do que o estritamente necessário. Todas as outras actividades enunciadas devem ser analisadas e compreendidas à luz dos mesmos princípios.
"Os defensores dos animais" a que me refiro invocam concomitantemente que estão a defender os direitos de quem está impossibilitado de o fazer. A questão de fundo não é essa. Eu também penso que os animais irracionais têm direitos. A diferença é que olham para estes como se fossem da mesma espécie e, por isso, os valores pelos quais se regem nas suas análises são os inerentes aos da sua própria espécie.
Os mais sofisticados criam o conceito da "morte como espectáculo" como reduto da sua argumentação reprovadora. Em primeiro lugar, não é disso que se trata, em segundo não é um problema que deva preocupar as vítimas, julgo eu.
A questão fundamental subjacente a esta temática é a real conflitualidade entre a cultura rural e a urbana. De grosso modo, as diferentes perspectivas reflectem uma dicotomia entre estas duas realidades. No mundo genuinamente rural respeita-se o meio ambiente e tratam-se com dignidade e carinho os animais com base num sistema normativo que os diferencia.
Nas nossas comunidades rurais é reprovável matar certos animais, nomeadamente os cães e não se matam, por exemplo, as ovelhas a tiro. Uma lebre não é criada como se fosse uma galinha e o modo de as matar também não é o mesmo. As diferenças no maneio, na preservação e no ritual da morte depende antes de tudo da espécie e dentro desta da raça.
Na cultura rural existem muitos traços que actuam como forças inibidoras de um real desenvolvimento, de uma abertura de espírito, de um sentido de modernidade e de tolerância que devem ser alterados, mas associar as actividades em causa a comportamentos "bárbaros" revela ignorância, arrogância, complexos de superioridade de quem quer impor a toda a sociedade a sua própria cultura, a urbana. Por outras palavras, trata-se de etnocentrismo.
Rematando, que a faena já vai longa e o director(a) de corrida já prepara os avisos, deixem-me dizer-vos que não sou caçador, nem tão pouco pescador, muito menos toureiro. Sou apenas um lidador enfrentando o labirinto dos mistérios da vida e da morte num ruedo que tem como centro a minha aldeia, mas como limite o que está para além do que a vista alcança.

Joaninha, já tinha percebido que pintavas. É bonito. Não sou conhecedor de pintura, mas aprecio as coisas belas. Emocionam-me. Despertam-me os sentidos, e os sentimentos. E o belo pode estar em qualquer lado, em qualquer coisa, em qualquer de nós. Pode ser um gesto, um olhar, uma paisagem, uma frase, um sentimento, uma obra de arte. Pode ser matéria, mas também não o ser.  
O que seria o mundo e a vida sem o sentido estético das coisas? Uma aberração de certeza, uma monotonia seguramente. Temos todos o mesmo sentido estético das coisas? Obviamente que não. A apreciação e valorização estética são consequência da cultura (no sentido antropológico e sociológico) de cada um. É uma interpretação livre e já democratizada, mas, atenção, há limites, melhor, critérios: "nem tudo o que brilha é ouro".
Terei muito gosto em visitar a tua próxima exposição.
armando
Desculpem o tamanho do texto, mas deu-me para aqui. Só o envio porque sei que ninguém é obrigado a lê-lo.

3 comentários:

  1. Armando,

    Acabas com esta frase, como nota de rodapé: “Desculpem o tamanho do texto, mas deu-me para aqui. Só o envio porque sei que ninguém é obrigado a lê-lo.”

    E tens razão absoluta: ninguém é obrigado a ler o teu texto!

    Contudo, se o não lerem, perdem um texto maravilhoso, o mais belo que aqui li, e que me deixou com um nó na garganta e como que um murro no estômago… Já o li umas três vezes!

    Há quem defenda que este Blog é apenas para o programa do BE e intocável! Pois eu defendo que é um Blog para as pessoas serem informadas do programa da Filomena Silva, eleita pelo BE para a Assembleia de Freguesia local. Mas é um Blog para todos os portugueses – Blog nacional e internacional -, pois ele é visto no Japão, Israel, Finlândia, Noruega, Espanha, Itália, França, Bruxelas (UE), Bélgica, Estados Unidos, Reino Unido, Suécia, Suiça, etc., etc., e todos os portugueses têm direito a opinar sobre o que quiserem.

    Não podemos esquecer que tudo, mas tudo, é política. Até, para mim, religião é política!

    À semelhança do ESQUERDA.NET, site oficial de notícias do Bloco de Esquerda, em que tudo lá cabe, em que todos os que querem podem comentar… e os comentários, embora moderados, são inseridos – eu comento e nunca fui recusada! -; e são inseridos porque não são ofensivos, mas sim, como que pequenos artigos de opinião que cada um tem o direito de colocar lá. E há, também, os Artigos de Opinião de várias individualidades, que focam vários temas e não se cingem apenas ao programa do BE, mas sim à visão que cada uma dessas individualidades tem sobre um certo tema, que outro(s) poderão não ter.

    O que me sensibilizou mais no teu artigo “INTERIORES” eu concordar tudo o que escreves, especialmente sobre os animais…

    Acho que a legislação tem ido longe demais com os fundamentalismos de quem defende os animais como seres iguais ao ser humano. Mas, alguns, nem sequer defendem certos seres humanos como iguais aos outros seres humanos!... É caricato!

    Eu tenho um gato que é uma das minhas maiores alegrias! E não o deveria ter, pois tenho problemas respiratórios alérgicos e crónicos. Mas eu amo aquele Pinóquio lindo, quase como se fosse um filho. No entanto, ele é um animal e eu sou uma pessoa… E não o vou soltar, dar-lhe liberdade, só porque há quem defenda que os animais devem viver livres. Não! Criei um lar para ele e sei que ele é feliz nesse lar. Talvez eu até tenha nascido para o criar… e essa seja a minha missão na terra! Rsssssssssssssss

    Abraço
    JOÃO

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  2. Olá, Armando,
    Olá a todos!

    Vamos lá conversar um pouquito a tomar um café, desta vez na Charneca de Caparica e com a Filomena Silva, tua amiga de longa data. Podemos estar no café onde ela se reúne com os bloquistas da zona dela, o Artecafé. Boa?

    A tua mensagem é muito bonita e eu gosto muito de ler sobre hábitos diferentes dos meus. Eu sou citadina. Em pequena, volta e meia ia passar umas férias fora de Lisboa, mas nunca em quintas ou com familiares, pois toda a família era Lisboeta. Íamos para hotéis, residências e apartamentos alugados para férias. Quando era mais crescidinha, também podia acampar, mas com todas as mordomias. Conheci Portugal de lés a lés. Cheguei a ver umas galinhas e galos, uns coelhos, uns pombos… Ficava muito entusiasmada, pois só convivia com cães e gatos. Então os meus pais escolhiam lugares mais pequenos e pitorescos, onde via os rebanhos a atravessarem-se na estrada, os cavalos soltos nos campos e os bois ao longe a pastarem.

    Fui a muitas feiras anuais por várias zonas do país e gostava muito de ir, todos os anos, à festa do campino em Santarém.

    Conheço bastante bem o Alentejo, mas como turista. Não com uma realidade como a tua, que é fascinante e tão contrária ao stress da vida na cidade e ao espírito da desconfiança com que sempre convivi, com a porta de casa fechada à chave e com corrente… Dormir ao relento a ver as estrelas… Quem dera!

    O artigo que escreveste aquando das polémicas touradas em Barrancos e que partilhaste connosco, não é mais nem é menos do que eu penso sobre todo esse tema dos “defensores” dos direitos dos animais. Tem graça que fico sempre incomodada com o facciosismo de certas pessoas que falam nos debates televisivos e que usam e abusam do facto dos animais não terem voz e eles serem a voz dos animais. Será que se os animais falassem estariam de acordo com eles?
    Eu, por exemplo, fui criada a ir ao Coliseu e não perdi um espectáculo de circo com animais. Fui vezes sem conta ao Jardim Zoológico e adorava aquele contacto com o conhecimento de novas espécies.

    Agora vejo e ouço dizerem que os animais não nasceram para dar cambalhotas, etc. E nós? Nascemos para estar fechados horas a fio a trabalhar com máquinas eléctricas, a fazermos os mesmos movimentos, horas e horas seguidas, sem direito a conversar, a ir à casa de banho, a levantar a cabeça, como tantas e tantas pessoas nas várias fabricas pelo mundo inteiro. Será que teremos que ir todos a África para ver os leões? Não estarão a criar leis de um fundamentalismo extremo? Eu interrogo-me constantemente sobre isso.

    Sou bloquista, adoro animais, fui criada sempre com cães e gatos, mas nunca me viram numa manifestação a favor dos “direitos dos animais”. Quem tem animais, quem convive com os animais, ama os animais! E trata bem deles!

    Vou acabar. Quando puder, voltarei para responder ao resto da mensagem. Falarei sobre a pintura em particular e a arte em geral. Mas digo já isto: o conceito de belo é subjectivo! O que é belo para mim, pode não ser belo para ti! E sim, o que é belo para mim também me emociona. A pintura, em geral emociona-me. A música, essa, emociona-me sempre muito, quando é de qualidade. Aprecio todo o tipo de música. Mas a chamada música clássica emociona-me até às lágrimas. E gosto muito de cantares alentejanos! Pena serem machistas… eheheheheheh

    Abraço
    Joaninha

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  3. Os que mais de perto me conhecem sabem que eu tenho uma certa aversão a comunicar por este meio virtual: prefiro ou o telefone e ou a certa postal quando "o cara a cara" não pode ser
    usado por força da distância. É que eu sou "feroz" defensor do contacto pessoal. Adiante.
    Tudo isto para dizer que tive vontade de escrever quase tudo o que a Joaninha escreveu sobre o artigo do Armando. (Somente não "entraria" no campo da arte.)
    Mas com a tal semi-aversão que acima refiro, acabei por ir adiando a escrita do comentário e... a Joaninha antecipou-se.
    Assim, e porque também não quero deixar passar em claro tão lindo e assás profundo artigo, aqui estou a declarar que A JOANINHA ME TIROU AS PALAVRAS DO MEU TECLADO.
    Bem hajas, Armando!
    Um abraço à maneira!
    Bernardes-Silva

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